Quando Eu Era Vivo
Júnior (Marat Descartes), um homem desempregado que enfrenta um processo de divórcio, volta a morar com o pai, vivido por Antônio Fagundes, em um apartamento no centro de São Paulo. Nessa nova fase de sua vida, a morte parece estar sempre ao redor: é no caça palavras onde acha o verbo conjugado “morreu”, no comentarista da TV afirmando com veemência que “o importante é morrer com saúde”, ou no ambiente clean do imóvel, onde lembranças de sua falecida mãe foram apagadas dando lugar a uma academia caseira – como se a mulher nunca tivesse existido. É nesse apartamento aparentemente comum, mas rodeado por algo estranho, que se desenvolve a ação de Quando Eu Era Vivo, novo longa do diretor Marcos Dutra.
A cantora Sandy completa o elenco desse thriller psicológico com elementos do terror. Ela interpreta Bruna, uma estudante de música que aluga um dos quartos do imóvel. Com a chegada de Júnior, ela logo se envolve nos conflitos entre pai e filho. Enquanto o primeiro se esforçou para apagar sua falecida esposa de sua vida, o outro agora resgata a memória de sua infância com a mãe e o irmão Pedro (Kiko Bertholini), por meio de objetos encontrados encaixotados na casa e fitas VHS.
O último trabalho de Dutra, Trabalhar Cansa (codirigido com Juliana Rojas), usava elementos do terror para expor as formas de relações de trabalho no Brasil. Por meio de um homem desempregado e uma ex dona de casa que monta um mercado e vira patroa – tanto em casa quanto no negócio -, os diretores produziram uma obra bastante reflexiva e crítica da sociedade moderna. À medida que a personagem principal deteriorava, piorando o tratamento dado aos seus funcionários, a umidade da parede do estabelecimento crescia, revelando o monstro que a mulher se tornara. Em Quando Eu Era Vivo, Dutra repete a fórmula, mas abandona a crítica social para entrar no terreno do psicológico e do religioso, aproximando-se mais do gênero de terror.
O apartamento onde se desenvolve a história começa bem comum, branco e arejado, sem nada que chame muito a atenção, além do vício de Sênior (como o pai é chamado, por ter o mesmo nome do filho) em exercícios físicos. A medida que o personagem principal vai se aproximando de sua mãe, trazendo de volta sua memória (quiçá sua presença), ou talvez enlouquecendo, o ambiente vai ficando mais denso: voltam os objetos do passado, que deixam a fotografia mais escura e envelhecida, e, consequentemente, mais sinistra. Sai a lâmpada econômica branca, entram as velas e as cortinas. Da mesma forma que a umidade da parede do supermercado aumentava no outro longa-metragem, o apartamento vai se tornando cada vez mais diferente. Deixa de ser algo vazio, sem sentido ou personalidade, e se torna uma homenagem ao passado, tão inquietante quanto hostil.
Quando Eu Era Vivo pode passar como um filme de terror apenas esquisito para a maioria do público. Uma obra que coloca arma e navalha em cena, e não as usa; insere um boneco do Fofão em um dos momentos de maior suspense do filme, quase quebrando o clima de horror (e aumentando a sensação de que há algo muito estranho nisso tudo) com a brincadeira. Original, talvez, mas estranho, certo?
A grande variedade de elementos em cena, a falta de informações sobre os personagens (Júnior deixou mulher e filhos, mas o que realmente sabemos sobre esses dois?) e o mistério inerente a temas como ocultismo, religiões e o sobrenatural (assuntos essencialmente contraditórios e abertos às mais diversas versões e interpretações), tornam Quando Eu Era Vivo uma experiência rica, cuja melhor parte pode se iniciar depois que as luzes se acendem: o final inconclusivo traz muitas perguntas, nenhuma resposta, e o convite para voltar atrás e pensar em tudo o que aconteceu. Quem está vivo, quem está morto? Alguém está vivo, alguém está morto? Bem diferente do que acontece com o terror convencional e com o cinema brasileiro mais comercial, o leque para as mais malucas interpretações e conversas de bar está, felizmente, aberto.
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