Lars Von Trier: a “persona non grata” que todos querem conhecer
Por Juliana Varella
Chacoalhar a mesmisse e tirar seus colegas da zona de conforto nunca foi novidade para Lars Von Trier. O dinamarquês que eliminou paredes em “Dogville”, matou um bebê em “Anticristo” e destruiu a Terra em “Melancolia” parece gostar de tudo aquilo que outros diretores evitam. Tudo o que é tabu lhe é inspiração.
Basta lembrar do episódio de 2011, quando, após declarar que consequia entender Hitler e até simpatizar com ele, foi banido do Festival de Cannes e considerado “Persona non Grata” – frase que depois estampou em sua camiseta no Festival de Berlim. Este ano, Von Trier volta ao evento francês para lançar sua versão estendida de “Ninfomaníaca”.
Mal entendidos à parte, a verdade é que o diretor não se esquiva da polêmica: sexo, religião e a maldade inerente ao homem (disfarçada pela hipocrisia) são seus temas favoritos desde que lançou “Elemento de um Crime” em 1984. Nele, um detetive se envolve tanto com a investigação de um serial killer que começa a se identificar com ele.
O dinamarquês, nascido Lars Trier (o “Von” foi acrescentado depois), sempre soube de seu potencial explosivo: em 87, seu próximo longa mostraria um diretor (ele mesmo) criando um filme sobre um médico (também ele) que espalha uma doença e acaba contaminando o mundo real. Essa doença pode ser o mal-estar que causam os filmes de Lars, ou suas ideias perigosas.
Uma das “ideias perigosas” do cineasta foi o Manifesto Dogma 95, escrito com Thomas Vinterberg (“A Caça”) para guiar o novo cinema dinamarquês nos anos 90. Filmagens in loco, sem acessórios, disfarces, truques de cenografia. Câmera na mão.
As regras serviram mais para dar um novo sentido à arte do país (humanizando também a gastronomia e a arquitetura, como mostrou uma matéria do The Guardian em 2012) do que para petrificar o trabalho do cineasta, por isso logo foram caindo em desuso por seus idealizadores. O minimalismo, em diferentes níveis, pode ser visto em “Ondas do Destino”, “Os Idiotas”, “Dogville”, “Manderlay” e “O Grande Chefe”.
Mentiras de uma sociedade hipócrita
Em “Dançando no Escuro” (2000), o tema da hipocrisia começaria a aparecer com força, desembocando depois no clássico “Dogville” e na comédia de baixíssimo orçamento “O Grande Chefe”, para então reaparecer apoteoticamente em “Ninfomaníaca”.
Naquele primeiro filme, Bjork vivera uma mulher a caminho da cegueira, que juntava dinheiro para salvar o filho da mesma doença enquanto enfrentava traições e injustiças das pessoas à sua volta. Sem medo de encaminhar suas protagonistas (quase sempre mulheres) à tragédia, Von Trier mais uma vez chocava o mundo.
Já em “O Grande Chefe”, sua provocação foi ao universo empresarial, com a história de um CEO fictício, criado (e depois interpretado por um ator exagerado) apenas para vender uma empresa e que, na teoria, não deveria interferir no dia-a-dia dos funcionários nem tomar decisões que os beneficiassem.
Sexo e religião, combinação proibida
A sexualidade feminina, discutida em “Ninfomaníaca” com uma naturalidade poucas vezes vista no cinema, já tinha sido tema de “Ondas do Destino” e “Anticristo”, de formas praticamente opostas (que, talvez, se expliquem numa passagem de “Ninfomaníaca” que fala sobre as Igrejas Ocidental e Oriental).
Em “Ondas”, uma mulher extremamente religiosa se casa com um homem bruto e, quando ele sofre um acidente paralisante, ela passa a procurar outros homens para satisfazer aos desejos do marido e de Deus, sofrendo como tentativa desesperada de salvação do amado.
Já em “Anticristo”, Charlotte Gainsbourg vive uma mãe que perde o filho durante um ato sexual e transforma seu luto, progressivamente, em loucura e violência contra o marido. É também de uma situação impensável que trata “Melancolia”, drama que estuda as reações de diferentes pessoas diante do fim do mundo.
O espelho distorcido
Se Lars Von Trier elege justamente os temas mais espinhosos para trabalhar sua cinematografia, talvez as razões não sejam tão negativas quanto pensam alguns de seus críticos vorazes. Seus filmes são apenas um espelho levemente distorcido da realidade, que evidencia o mal tanto quanto o questiona.
Como afirmou certa vez, o cineasta tem gosto por personagens idealistas, que causam estragos apesar de suas boas intenções. Em “Ninfomaníaca”, a heroína causa a discórdia à sua volta, mas sua verdadeira intenção é combater o preconceito, o machismo e preencher o vazio deixado pela ausência do pai – um modelo imaculado de educação e, provavelmente, seu único amigo.
Há, aí, uma esperança velada de que o espectador repense suas relações pessoais, aceite a si mesmo como é e, surpreendentemente, que acolha e ajude o outro. Mesmo se esse outro lhe causar repulsa.