O Lar das Crianças Peculiares
Aventuras em universos fantásticos – quem melhor para dirigir um filme assim do que Tim Burton? Poucos diretores conseguiram criar tantos mundos diferentes com um estilo próprio e sempre criativo como o cineasta de Edward Mãos de Tesoura. Burton recentemente adaptou livros de Lewis Carroll (Alice no País das Maravilhas) e Roald Dahl (A Fantástica Fábrica de Chocolate), e agora assina mais uma adaptação para o cinema. O Lar das Crianças Peculiares (Miss Peregrine’s Home for Peculiar Children) traz para as telas O Orfanato da Srta. Peregrine para Crianças Peculiares, de Ransom Riggs, o primeiro livro da trilogia também composta por Cidade dos Etéreos e Biblioteca das Almas. A obra literária, cheia de crianças ou adolescentes com características especiais, como levitar ou dar vida a bonecos, já tinha a cara de Burton, uma vez que parece uma mistura de Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas com X-Men. O diretor soube aproveitar muito bem o material que tinha a disposição e entregou um filme apaixonante.
Jacob (Asa Butterfield, de A Invenção de Hugo Cabret) é um adolescente nada peculiar. Ele tem uma rotina entediante e, no colégio, é um zero à esquerda – um jovem excluído e irrelevante naquele ambiente. Seu melhor amigo era o seu avô Abe (Terence Stamp), que ele acredita que sofre de demência. Ao longo de toda a sua vida, o garoto ouviu histórias fantásticas que seu avô contava como sendo reais – da época em que viveu em um orfanato com crianças diferentes dos outros, protegidas de criaturas do mal. Quando Abe vem a falecer, entretanto, Jacob tem a visão de um monstro como os descritos pelo avô. Atendendo ao último e confuso desejo do falecido, de que o jovem encontre a senhora Peregrine (Eva Green), que teria vivido com Abe no orfanato, Jacob viaja a uma pequena ilha perto do País de Gales, com pouco mais de cinquenta habitantes. Lá, ele reencontra todas as crianças estranhas cujo avô mostrou as fotos para ele – elas não envelheceram nada. Isso pois Jacob entrou em uma fenda no tempo, em que o mesmo dia de 1943 se repete a cada 24 horas. Samuel L. Jackson e Judi Dench completam o elenco.
O roteiro de Jane Goldman (Kingsman: Serviço Secreto) consegue sintetizar bem o livro e, embora pareça que tudo acontece muito rápido no começo, o texto funciona nas telas, focando nos detalhes mais importantes dessa jornada de Jacob. O visual do longa-metragem, marca forte do diretor, consegue criar um ambiente de conto de fadas, e o mundo da fenda é colorido e realmente deslumbrante (em oposição à paisagem sóbria da região no presente). É como se Jacob entrasse no “país das maravilhas”, como na outra adaptação de Burton. Butterfield também convence como um menino que descobre que todas as histórias de ninar que ouvia eram verdadeiras, e a opção em reforçar o jeito desajeitado dele rende algumas risadas – embora o traço mais interessante dele, ou melhor, o maior conflito pelo qual ele passa no livro, tenha sido limado nessa adaptação.
Há quatro grandes mudanças em relação ao livro. A primeira, decepcionante, é que o aspecto mais polêmico ficou meio escondido nas telas. Emma (Ella Purnell), o interesse amoroso de Jacob, era a namorada de Abe. Sim, a paixão do herói do filme é pelo grande amor da vida do avô. Vale lembrar que a garota não envelheceu um dia nesses anos todos, já que na fenda é sempre 1943. Mas Emma, depois de amar Abe, vai amar Jacob? Ela realmente ama o menino ou ama a semelhança que ele tem com o avô? O interesse amoroso entre eles não é escondido, mas essas questões não afligem nem minimamente os personagens nas telas, o que não é algo crível. Parece que a ideia aqui é empurrar para debaixo do tapete essa percepção de que o relacionamento entre eles também é peculiar. “Quem ficar com isso na cabeça, paciência, mas não vamos jogar luz nesse aspecto” parece ser o que passou na cabeça dos realizadores ou do estúdio – mas, enfim, talvez seja algo a ser trabalhado melhor nos próximos dois filmes, a depender da bilheteria desse primeiro, uma vez que o relacionamento entre eles apenas dá os primeiros passos nesse longa-metragem.
Outra mudança é que a peculiaridade de Emma não é a mesma do livro. Na obra de Riggs, a garota pode criar e manipular o fogo. Aqui, ela manipula o ar, podendo levitar e usando sapatos que a mantém presa na terra – ou seja, trocando de poder com Olive (Lauren McCrostie), outra adolescente peculiar. O motivo dessa alteração também não fica claro: ela não trouxe, pelo menos nesse primeiro longa-metragem, nenhum momento que a justificasse – apenas a troca de pequenos barcos por um navio. Nenhum grande problema com isso, uma vez que o intuito parece descolar a trilogia ainda mais do livro no próximo filme: um pequeno detalhe no final acaba com toda a motivação para a história de Cidade dos Etéreos, o que indica que muitas surpresas podem ser esperadas por quem leu o livro para o próximo longa-metragem.
E falando em surpresas, o grande trunfo do filme é o seu clímax, que é totalmente diferente do livro. Aqui vemos a inventividade de Tim Burton a todo vapor, ao criar toda uma pequena batalha, bastante criativa, para encerrar o longa-metragem. Um encerramento muito mais interessante que o original, que deixava tudo mais aberto – embora, aqui, não há indícios de para que direção essa história está sendo encaminhada. Mas uma coisa é certa: Burton teve êxito ao trazer para as telas o universo fantástico criado por Riggs. O resultado é mágico e divertido.
| Gabriel Fabri