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Entrevista: Em “Entrelinhas”, cineasta brasileira traz melancolia e sensualidade da arte em experimento de um “olhar feminino” - Pop with Popcorn

Entrevista: Em “Entrelinhas”, cineasta brasileira traz melancolia e sensualidade da arte em experimento de um “olhar feminino”

Integrando a competição Novos Diretores da 40ª Mostra Internacional de Cinema, Entrelinhas (The Unattainable Story) é a estreia da brasileira Emília Ferreira na direção. O longa-metragem, que é uma produção internacional, tem no elenco o astro Harry Hamlin, de Fúria de Titãs (1981) e da série de TV Veronica Mars.

A partir dos bastidores de uma peça teatral, o filme coloca em questão os limites do que é real e o que é ficção, focando na história da roteirista Jacqueline (Irina Björklund) e nos seus relacionamentos com Peter (Kevin Kilner), David (Hamlin) e o diretor da peça, Sekne (Edoardo Ballerini). Entrelinhas tem mais duas sessões na Mostra: dia 27 de outubro, no Centro Cultural São Paulo; e dia 2 de novembro, no Espaço Itaú Frei Caneca. O longa-metragem ainda não tem previsão de estreia no Brasil.

Em entrevista exclusiva, Emília fala sobre a estrutura poética do projeto, a influência de artistas como Jack Vettriano e Edward Hopper na estética, a questão do olhar feminino no filme, e a que conclusão chegou com o trabalho que considera um estudo da alma humana. “Carl Jung sempre dizia que, se você sabe o caminho que você está indo, você está no caminho de outra pessoa”, explica. “Com a nossa domesticação, perdemos o acesso do caminho para ser autêntico, que é ser vulnerável”.

Emília Ferreira
Emília Ferreira

Confira a entrevista completa:    

Quando você teve contato com o roteiro da Gay Walley, o que mais te interessou no projeto?

Foi a estrutura poética que tinha. A princípio, era um roteiro para teatro, mas quando eu o li, eu vi um filme que eu nunca tinha visto antes. Ele passou na minha frente, foi muito inspirador de ver, como se fosse mais ou menos uma música. Então foi isso que me chamou atenção, a estrutura poética, e também o diálogo do que representa ser uma mulher, ser uma artista como mulher e ser vista através de um ponto de vista de um outro artista. É uma história dentro de uma história, e que tem outra história maior por cima.

Essa música que você imaginou, como era?

Era como se fosse Bach. Música clássica. A música vai, sobe, e é muito segmentada. Te leva às emoções rápido, mas te tira rápido delas. Não te dá respostas, mas te deixa com sentimentos quase que do desconhecido, aquela vontade de que você tem que ouvir de novo. E quando você escuta de novo, você tem uma outra visão. Então tem aquele mistério da música clássica. Foi isso mais ou menos que vi nesse filme. Esse mistério de que a gente vê coisas tão familiares, mas que não tem muita conclusão.

Essa coisa da música tem a ver com a montagem, que é bem fragmentada?

Sim, porque era mais ou menos que um experimento, então a ideia era deixar nas pessoas uma sensação, não querer satisfazer, responder perguntas. Nesse projeto específico, não seria justo. Realmente, a gente não sabe se o Peter ou o David são verdades, ou se aquilo lá é imaginação da escritora, ou se tudo no fim foi apenas escrito por aquele diretor. Então acho que a experiência de cada indivíduo vendo esse filme será diferente – e com a música também é assim.

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E porque a escolha do diretor ser um homem?

Uau, porque ele era um homem? (Pensativa). Quando eu estava escrevendo, foi uma coisa muito orgânica. Hoje pensando bem, e olhando para trás, foi como uma resposta do controle que o homem ainda tem nas artes, mas também… Tudo o que a gente vê hoje na arte, principalmente em filme, é dito a partir do ponto de vista que a gente chama de male gaze (olhar masculino). Então acho que foi interessante um homem tentar descobrir essa mulher, mas não chegar a uma conclusão sobre ela, perceber que ela era quem tinha o controle sobre a própria história, que ela o manipulou, que no final das contas ele era o objeto, e não ela.

Quando você fala de male gaze, você fala exatamente do quê…?

Eu falo de todos os filmes que a gente vê. E olha, são filmes que eu amo, hein? Mas vamos ver os de hoje, Ex_Machina (Dir: Alex Garland), por exemplo. Perfeito o filme, né? Mas ainda é um homem criando a ilusão de uma mulher perfeita. Os longas de ação: eles colocam a mulher como a mulher forte, mas ela é estereotipada através do que ela veste. Quase todos os filmes que eu vejo… No avião, eu vi Como Eu Era Antes de Você. Meu, por favor? O que aquela menina é? E olha que eu chorei… mas olha, é tudo através do male gaze, porque é isso que a gente está acostumado, é o jeito de contar histórias que a gente está acostumado. Então, não é que eu estou indo contra isso, mas eu só tenho curiosidade de saber como que é a mulher do ponto de vista da mulher. Quem ela é? Então, foi mesmo um fato de curiosidade de tentar dar uma pesquisada do que é um female gaze (olhar feminino).

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Você imaginou esse filme como um estudo da alma humana. A que conclusão você chegou sobre essa alma?

De que a vida é um mistério e de que você tem que se olhar por dentro e segurar quem você é, tentar ser autêntico, não ter vergonha de quem você é. Essa artista, a Jacqueline está em busca de quem ela é. E ela chegou aos 40 anos nessa busca. Teve que sofrer muito na vida para aceitar isso, porque ela queria se encaixar, se ajustar na sociedade. Então, o que eu aprendi é que você nunca vai saber. O que significa para mim, para você vai significar outra coisa, mas amanhã eu posso concordar com você ou vice-versa. A vida é muito simples nesse sentido, então viver com autenticidade, verdadeiramente, tentar ter uma voz, foi o que eu aprendi.

E acho que mais do que isso, a gente tem que aprender a ser vulnerável. E nesse processo, eu aprendi a ser vulnerável. Eu era muito firme, mas a vida não é assim. Se você toma a decisão de ser autêntico, o caminho é ser vulnerável. Carl Jung sempre dizia que, se você sabe o caminho que você está indo, você está no caminho de outra pessoa. Essa incerteza, esse frio na barriga que você tem todos os dias, é o caminho. Então também tem que ter a calma e o entendimento de que muitas coisas que a gente deseja que sejam, não são verdades, são ilusões que a sociedade impõe sobre a gente para nos poder manipular. E eu acho que abrir as suas asas fora desse espaço e mesmo assim ser parte de um sistema é uma liberação super boa, e é difícil para nós humanos, com a nossa domesticação, perdemos o acesso do caminho para ser autêntico, que é ser vulnerável.

Ao meu ver, o filme fala bastante sobre o processo criativo. Que reflexão você pretendia provocar sobre isso?

De que o processo criativo exige sacrifício e é uma jornada solitária.

Solitária por quê?

Para um projeto se expandir para todas as pessoas, primeiro ele tem que ser pessoal. Eu não acredito em mass comunication, por mais que eu seja jornalista e essa seja minha formação. Eu acredito em mass personalization. Eu quero conectar com você no nível indivíduo, mas para fazer isso eu tenho que saber quem eu sou, e para saber isso eu tenho que me expor. E é uma jornada solitária, porque é para dentro. Acho que o filme tem muito isso, todos que eu gosto são muito pessoais. Porque se você quiser contar uma história de várias pessoas, você não vai poder se conectar, porque não tem aquela coisa que te segura realmente, que seja um espelho. É difícil, as pessoas não têm coragem de olhar para dentro de si mesmas. Shakespeare sempre dizia que somos atores indo de um lado para o outro no teatro, usando máscaras. Qual é o seu ato na sua vida? Acho que é por isso que é solidário. Quando você está numa jornada criativa, a solidão faz parte do processo.

Como você vê o paralelo entre o seu processo de criação e o processo de criação dos personagens que estão escrevendo e dirigindo a peça?

A criação dos personagens foi um processo muito pragmático. A gente tinha o roteiro e pensava: quem é essa mulher, quem ela está representando, por que a gente tem que contar a história dela? De novo a gente volta para o female gaze: tudo o que sabemos sobre a mulher é através de pontos de vistas que são de homens. Okay, ótimo. Mas como que seria através do ponto de vista da mulher? Aí a gente escrevia, voltava, não dava certo. Tem o problema que, se a gente explorasse muito… É que nem a Hillary Clinton, todo mundo fala que ela é fria, mas há trinta anos ela não era, ela teve que se ajustar. Mas se ela fosse menos dura hoje, eles também iriam criticá-la. Não sei porque tem essa crítica quando uma mulher está em posição de liderança. Quanto à Jaqueline, a gente vê ela como a representação de um indivíduo universal, que está em todos nós, são espelhos de sentimentos que a gente têm.

Quanto ao processo de criação do filme, estudei muitos filmes e muita arte, tem muitas referências, como As Meninas, do Velázquez, que é uma pintura com várias histórias dentro de uma história. Então olhando para aquela tela, você pensa em como que vai contar uma história que é metafísica. Fiz um look book de mais ou menos mil páginas com todas as referências de enquadramento. Vim de uma escola muito formalista, então a forma era muito importante para mim. Então foi muita pré-produção para poder achar esse fio condutor para levar a gente até o final do projeto.

Qual foi a importância do Jack Vettriano do Edward Hopper para essa composição?

O Vettriano é um artista que escreve sobre a tensão da sensualidade, e também explora a mulher do ponto de vista mais sensual, quase como se fosse um pedaço de carne mesmo. Mas ela ainda tem esse poder, essa sensualidade. Eu queria que essa escritora também fosse sensual. Não é porque eu sou mulher que eu não vou falar da sensualidade da mulher. Então, o Vettriano me inspirou sobre essa tensão da sexualidade.

E, falando sobre melancolia, Edward Hopper. As pinturas dele são super orgânicas e toda vez que eu vejo Nighthawks, me dá uma dor, uma solidão, e eu me vejo ali. Porque as vezes nossos pensamentos vão a 300 quilômetros por hora, e quando a gente para na frente de uma obra de arte que fala com você – é a mesma coisa quando eu falei que li o roteiro e vi um filme -, quando eu paro na frente dessas obras de arte eu vejo um filme ali, vejo a luz passando, refletindo. Um elemento dele que usei muito foi a questão da luz, a fotografia foi muito baseada na pintura dele, sombras, luz estourada, cores quentes. A gente queria recriar essa melancolia que eu sentia quando via as pinturas do Hopper.

A personagem afirma em determinado momento que a criatividade vem da dor e do desejo sexual. Você concorda com essa afirmação?

Sim, Freud disso isso há cem anos, e acho que não mudou muito não. Pelo fato de que, primeiro, nós somos humanos domesticados, e essa domesticação fez que a gente reprimisse muito os desejos sensuais e sexuais. Segundo, nós somos indivíduos, nascemos e morremos sozinhos, e no decorrer a gente tem toda essa tensão entre coletivismo e não-coletivismo.
| Gabriel Fabri

Confira as salas e horários do filme na 40ª Mostra: http://40.mostra.org/br/filme/8844-ENTRELINHAS

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