Entrevista: “Sinfonia da Necrópole” subverte a ideia de cemitério com humor e números musicais
Após dirigir com Marco Dutra Trabalhar Cansa, filme que teve exibição na mostra Um Certo Olhar, do Festival de Cannes, a paulista Juliana Rojas faz o seu primeiro longa-metragem solo, o musical Sinfonia da Necrópole. Com estreia marcada para o dia 14 de abril, o filme ressignifica o espaço do cemitério: o local ganha vida com números musicais e toques de humor, a partir da história de Deodato, um “aprendiz de coveiro”.
Interpretado por Eduardo Gomes, Deodato arruma um emprego no cemitério e tem dificuldades para se adaptar ao ofício. Entretanto, o local passará por uma reorganização comandada por Jaqueline (Luciana Paes). Os dois precisarão trabalhar juntos para verificar quais túmulos estão abandonados.
Em entrevista exclusiva, Juliana Rojas fala sobre as referências estéticas do filme – que incluem até filme da Xuxa! -, as dificuldades de filmar em um cemitério e sobre o processo de compor as canções do longa-metragem. Confira:
Pop with Popcorn: Como surgiu a ideia de fazer um musical em um cemitério?
Juliana Rojas: Eu sempre gostei muito de cemitérios, de passear neles, e quando vou para outras cidades sempre visito algum. Desde quando estava na faculdade de cinema, tinha vontade de fazer um filme que contasse um pouco desse microcosmo que tem dentro de um cemitério – é quase como uma cidade, você tem uma administração e as pessoas que trabalham lá. Tinha um interesse de fazer um filme retratando isso.
Soube de uma história, que na cidade natal da minha mãe, eles estavam com esse problema de que a cidade cresceu e estavam faltando túmulos no cemitério. O que gerou uma crise, porque as pessoas não tinham mais onde ser enterradas. E eu nunca tinha pensando nisso, de que como a cidade cresce, o cemitério tem que acompanhar o crescimento. Aí descobri que é comum, de tempos em tempos, fazer um recadastramento, que é uma espécie de reurbanização do cemitério.
Eu achava que, por ser essa uma história que se passa no cemitério, mas que remete a uma realidade da cidade, e também para quebrar um pouco a imagem mais solene do local, seria interessante que o filme fosse leve, uma comédia de situação, com ironias. Achei que o musical ia ajudar nessa abertura, para você aceitar essa história em um cemitério. Isso tornou o filme mais lúdico e ao mesmo tempo promove um distanciamento critico para as pessoas – quando entra um número musical, tem uma ruptura de linguagem, é como se fosse uma suspensão. Isso é muito comum no teatro épico, utilizar música ou o próprio personagem para narrar o que está acontecendo.
E por que esse fascínio pelo cemitério?
Sempre gostei muito de filmes e de literatura de terror. Lembro de um conto da Lygia Fagundes Telles, “Venha Ver o Pôr-do-Sol”, uma história de dois ex-namorados que vão visitar o cemitério – nesse conto, fiquei fascinada por esse ambiente. Mas nunca achei assustador, sempre achei bonito, as estátuas, um lugar tranquilo.
As sinfonias dos anos 20, em especial São Paulo, Sinfonia da Metrópole, foram uma influência no seu filme?
Eu quis fazer mais uma referência por causa do título mesmo. Tem também o São Paulo – Sinfonia e Cacofonia, do Jean-Claude Bernardet. São dois filmes que gosto muito e que falam sobre as cidades. Acho que o título foi mais uma homenagem a esses filmes, mas na forma, não. Esses dois filmes são dessa fase do futurismo e falam muito sobre máquinas, uma cidade automatizada, e o Sinfonia da Necrópole fala mais sobre os indivíduos mesmo, e o espaço do cemitério.
Como foi o processo para compor as canções do filme?
Compus com o Marco Dutra [com quem dirigiu Trabalhar Cansa e dirige Boas Maneiras]. A gente sempre gostou de brincar de compor musiquinhas, a gente compunha para assistir à festa do Oscar. Em várias ocasiões, a gente brincava de fazer músicas, mas era uma coisa mais para a gente. Fomos fazer um curta que era uma ficção científica romântica e musical, Nascemos Hoje Quando o Céu Estava Carregado de Ferro e Veneno, e aí escrevemos três canções. Para o filme foi tranqüilo porque a gente já tinha essa parceria – geralmente, eu escrevo a letra e ele faz a melodia. Mas eu sabia que era importante eu escrever as letras, pois as músicas têm uma função dramatúrgica, de ajudar a contar a história. A letra da música tem que ser coerente com a voz dos personagens, então me aventurei nisso.
A gente conversou também sobre os estilos, de fazer uma variação, até porque em São Paulo a gente encontra vários estilos musicais, então pensamos um pouco nisso. A música do coveiro, na cena em que eles estão tentando animar o Deodato, seria legal ser um samba. Mas a dos mortos queria que fosse uma coisa meio pop e rock – cada uma de um estilo.
E por quê a escolha de “Evidências”, do Chitãozinho e Xororó, para a cena da Karaokê? [É a única canção não assinada por Juliana]
Eu costumo frequentar o Vivos, que é um karaokê em frente ao Cemitério do Araçá, e eu acho muito engraçado um lugar com esse nome na frente de um cemitério. Eu sempre vou lá e sempre canto essa música. Vejo também que as pessoas cantam muito e quando toca as pessoas ficam loucas, todo mundo canta junto. Então quando fui fazer um filme no cemitério, pensei: tenho que inventar uma cena no Vivos e cantando “Evidências”! É muito simbólico, e acho que é uma grande música de amor.
Falando em amor, como foi a construção dos personagens do Eduardo Gomes e da Luciana Paes?
Eles ajudaram bastante no processo. Conheço eles desde a época da faculdade de cinema, eles cursavam teatro. Já escrevi pensando neles. A gente improvisou muito nos ensaios para chegar nisso. E são personagens que de certa forma são opostos. O Deodato não sabe direito o que quer da vida, é um pouco sensível e medroso, é bastante romântico; e a Jaqueline é uma pessoa totalmente profissional, tem uma visão muito prática do que é esse trabalho no cemitério, é uma mulher forte, em uma posição de liderança. A gente tentou trabalhar esses opostos.
Assim como em Trabalhar Cansa, há em Sinfonia uma certa predileção pelo sobrenatural. Que semelhanças você vê entre esses dois filmes?
Nesse filme, tem elementos que a gente usou no Trabalhar Cansa, mas em proporções diferentes. Trabalhar Cansa tem um clima mais de suspense, é um filme mais tenso, com elementos de gênero e alguns momentos cômicos. Em Sinfonia é o contrário, ele é predominantemente cômico, mas também tem esses elementos de suspense e de gênero fantástico. Então, de certa forma é uma continuação dos outros filmes que já fiz, mas é em uma proporção inversa. Outras coisas continuam, como o interesse em retratar os trabalhadores e o universo de trabalho.
Por que essa questão do trabalho de novo?
Gosto de ver personagens nas suas profissões, de mostrar o ambiente e falar sobre as relações de trabalho, acho que a profissão toma uma grande parte da nossa vida e não é tão retratado assim. Eu me interesso por isso – ainda mais essas profissões que você não vê tão retratadas. Quando você vai em um cemitério, é um momento triste, portanto você nem enxerga a estrutura e as pessoas que estão lá. Então achava interessante mostrar a rotina de quem convive diariamente com sepultamentos e velórios. A pessoa encara de outro modo essa realidade.
Quais foram as dificuldades de filmar no Cemitério do Araçá?
Não foi muito difícil não, mas tinha algumas limitações. A maior dificuldade acho que foi na pré-produção, pois a gente tinha que fazer um levantamento dos conhecidos que tinham família nesse cemitério, para a gente ver quais túmulos a gente podia filmar e pedir autorização. E também tinha o procedimento de ver onde seriam os sepultamentos do dia, porque se fosse em um lugar que a gente estaria filmando, teríamos que nos rearranjar. Foi uma organização nesse sentido de não atrapalhar a rotina do cemitério e só mostrar e interagir com túmulos de pessoas que autorizaram. O resto a gente só podia filmar mais em plano-geral.
Quais foram as suas principais referências estéticas? Algum filme de terror específico?
A gente queria fazer uma referência em geral de filmes dos anos 1980. Falamos muito sobre filmes como Cidade Oculta, do Chico Botelho, filmes paulistas que mostravam a cidade de São Paulo. Esse especificamente é bem musical também. A gente falou de Lua de Cristal da Xuxa [dirigido por Tizuka Yamasaki], porque tem uma coisa fantástica também. Mas, no geral, a nossa referência é um cinema sessão da tarde dos anos 1980. A gente viu um pouco de thriller também para ver como eles utilizam a neblina, mas acho que foi isso, a gente não pegou nenhum filme de terror específico, foi mais um universo anos 1980 no cinema paulista e cinema “sessão da tarde”.
| Gabriel Fabri
Revisão: Maria Eugênia Ferreira