Holocausto Brasileiro
Em 2013, a jornalista mineira Daniela Arbex contou no livro Holocausto Brasileiro (Geração Editorial) um capítulo que havia praticamente sido esquecido na história: o hospital Colônia, em Barbacena, no interior de Minas Gerais, que funcionou ao longo de quase todo o século XX como uma espécie de campo de concentração para os indesejados da sociedade. Crianças com deficiência, negros, homossexuais, pessoas com deficiência mental etc, todos deixados para o abandono naquele lugar que, de instituição psiquiátrica, se transformou em palco de uma barbárie em que morreram, estima-se, pelo menos 60 mil de pessoas.
O livro, que se tornou um bestseller no Brasil, agora é transformado em documentário pela HBO Latin America Originals. Dirigido em parceria com Armando Mendz pela própria autora, que também assim o roteiro, Holocausto Brasileiro estreia em novembro no canal Max e será exibido também em toda a América Latina.
A história é a mesma no livro, e as chocantes fotografias da barbárie presentes na obra impressa foram transpostas à tela. Entretanto, mesmo quem já conhece o livro de Daniela, jornalista que foi a primeira a procurar sobreviventes (sim, essa é a palavra correta) do Colônia para dar voz a eles, não está imune ao documentário, que acrescenta novas nuances e dá uma dimensão mais viva a reportagem de Daniela, premiada pela APCA como melhor livro-reportagem de 2013.
Um dos aspectos que mais chama atenção no documentário é a naturalidade com que os ex-funcionários do “hospital” falam sobre a rotina do hospício, uma prisão em que as pessoas eram abandonadas para morrer e tratadas como lixo. Aos poucos, o público é levado a questionar esses personagens, que falam, por exemplo, sobre a tortura praticada nos pacientes – uma ex-enfermeira admite, até em tom de graça, que o choque elétrico era para curar os pacientes, mas que quem não se comportava também levava. Essas pessoas têm consciência do papel delas nesse massacre que se perpetuou por tantas décadas? O filme mostra que não.
Em coletiva para a imprensa, a diretora afirmou que o mais difícil não foi entrevistar os sobreviventes do Colônia – e olha que há depoimentos emocionantes e muito difíceis de assistir, como a criança com deficiência abandonada pelo pai e que sente até hoje, já velhinho, saudades dele; ou a menina que foi estuprada pelo patrão e jogada no Colônia para esconder sua gravidez. Não é à toa: os depoimentos de quem trabalhava lá primeiro incomodam pelo conteúdo, uma vez que falam sobre alguns absurdos que aconteciam lá dentro; depois, pela forma, já que a naturalidade com que falam mostra o quanto que aquela situação do Colônia era banal para eles (e, por extensão, para o resto da sociedade, que foi conivente com aquilo). É estarrecedor, por exemplo, um ex-funcionário contar que tirava os presos do hospital para trabalhar em troca de cigarros, apontando para o piso de azulejos da própria casa, colocado pelos pacientes.
Além de dar conta da dimensão do fato ocorrido, o documentário ainda consegue inserir histórias de esperança – além de falar sobre o reencontro de uma presa com o filho, décadas depois da separação, o filme retrata dois leitores do livro de Daniela, pai e filho que vão com a jornalista pesquisar sobre o paradeiro da mãe/avó deles. Lá, eles fazem a descoberta de que ela foi internada pelo próprio marido. Mal dá para ouvir as palavras emocionadas do senhor, que constata: “meu pai me fez acreditar que eu não tinha mãe”. É mais que a verdade ser descoberta, é uma angústia que se arrastou por toda uma vida sendo aliviada. O filme, portanto, acaba mostrando, mesmo que essa não seja sua intenção principal, o poder do jornalismo e do cinema de transformar a realidade. Justamente por revelar o que está escondido, ou, como no caso dos ex-funcionários do Colônia, revelar o que não se quer ver.
| Gabriel Fabri