Una
O filme mais intenso de 2016, Elle, de Paul Verhoeven, causou polêmica ao colocar como protagonista uma vítima de estupro, interpretada de maneira brilhante por Isabelle Huppert, que se recusa a se comportar da maneira que o público esperaria de uma mulher que foi violentada na sua própria casa. Com esse impactante longa-metragem ainda fresco na memória, como se fosse possível esquecer um filme como o de Verhoeven, Una pode até passar despercebido, apesar de tratar de um tema ainda mais espinhoso, mas sem a genialidade de Elle. Inspirado na peça Blackbird, de David Harrower, o longa-metragem também tem uma trama envolvendo abuso sexual, mas no caso, trabalha as feridas de um romance entre uma garota de 12 anos e o vizinho.
Anos após ser condenado e ter cumprido pena por pedofilia, Ray (Ben Mendelsohn) mudou de nome e reconstruiu a sua vida. Um dia no trabalho ele é surpreendido pela visita de Una (Rooney Mara), a mulher com a qual ele teve relações sexuais quando ela era criança. Ela vem pronta para confrontá-lo, despejar tudo o que guardou ao longo dos anos. Mas esse reencontro será mais complicado do que parece, uma vez que as memórias da época começam a florescer nos personagens – inclusive as lembranças boas.
Embora a premissa pudesse dar origem a um longa-metragem perturbador, a abordagem do diretor Benedict Andrews é diferente do esperado, o que pode gerar um leve incômodo no espectador. Una é um exercício de alteridade e empatia – de tentar entender personagens que são feitos para o espectador não gostar deles. Desfazendo o maniqueísmo melodramático que se poderia esperar de uma história como essa, com uma polarização de vítima e vilão, o filme tenta nos fazer entender melhor esse homem (o que não significa que tenta fazer o público simpatizar com ele).
Sem menosprezar o sofrimento de Una, que verbaliza as dificuldades que teve ao longo de tantos anos, o filme explora outro aspecto da relação deles para além da relação sexual que tiveram: o romance e a cumplicidade entre os dois, que eram apaixonados. Nenhum dos personagens nega que, quando se trata de uma relação com um menor, mesmo com o consentimento deste a relação não deixa de ser errada ou criminosa. Entretanto, as coisas boas do relacionamento vem à tona, além do surpreendente fato de que a garota ficou triste por ter sido abandonada pelo homem – a pré-adolescente estava realmente apaixonada por ele, e tal detalhe foi uma ferida para ela.
Ousado por aparentemente tratar um caso de pedofilia com um olhar menos condenatório, Una na verdade não deixa de ser critico a esse crime, mas o faz mostrando o pedófilo como um personagem complexo, e a relação entre ele e a garota trabalhada também com complexidade. Em suma, o filme provoca compadecimento por Ray, mas também provoca desconforto pelo mesmo. A personagem de Rooney Mara, entretanto, poderia ter sido melhor desenvolvida, uma vez que não fica claro se ela quer se curar ou se vingar, se ela o odeia ou se ainda o ama – são ambiguidades que poderiam tornar a história mais profunda e explosiva do que o resultado final.
Por Gabriel Fabri