Deus da Carnificina
Roman Polanski é uma daquelas pessoas que tem muito o que contar, muitos sentimentos para extravazar. Sua história é famosa: por um lado, o diretor de clássicos como Chinatown e O Bebê de Rosemary e o ganhador do Oscar pelo longa O Pianista (2002); por outro, o judeu que passou parte da infância na Polônia massacrada pelos nazistas, atormentado devido ao assassinato de sua mulher grávida, condenado por estupro de uma menor e exilado desde 1978. Sem dúvida uma personalidade com trajetória das mais peculiares, Polanski já deixou sua marca no cinema, mas continua a produzir filmes de qualidade. O último é Deus da Carnificina (Carnage), adaptação de uma peça de Yasmina Reza, que coassina o roteiro.
No longa, o filho de Penelope (Jodie Foster, de Um Novo Despertar) e Michael (John C. Reilly, de Precisamos Falar sobre Kevin) apanha do filho do casal composto por Nancy (Kate Winslet, de O Leitor) e Alan (Christopher Waltz, de Bastardos Inglórios). Os quatro se reúnem no apartamento da primeira dupla para um diálogo de reconciliação, algo muito simples, uma mera formalidade para reforçar os papéis sociais de cada casal. Eles parecem se entender sobre a situação das crianças, entretanto, algumas frases ditas pelos personagens acabam desencadeando discussões que irão além da rixa entre os filhos.
Polanski apresenta direção e roteiro ágeis, mostrando que num único ambiente, com um pequeno número de personagens, pode-se contar grandes histórias. Os diálogos são afiadíssimos, as cutucadas dos personagens, sutis, entretanto mais que eficazes para o resultado final: quatro personagens comuns desnudados, expostos com seus preconceitos e convicções também muito fáceis de serem encontradas na sociedade.
Um filme que se constitui à base de diálogos necessita de atores excepcionais. Não é à toa que dois nomes ganhadores do Oscar constituem o time feminino: Jodie Foster e Kate Winslet conduzem o longa e convencem (e muito) em seus papéis – não é à toa que disputaram o Globo de Ouro de Melhor Atriz esse ano. Os homens também não fazem feio, mas não impressionam da mesma maneira que Foster, o maior destaque entre o elenco, impressiona.
Por fim, vale a pena uma comparação com Cenas de um Casamento (1973), do mestre Ingmar Bergman. As nuances de um casal reveladas por meio de diálogos também já foi um filme – a diferença da obra de Polanski para essa é que ao invés entre uma dupla, a “guerra” agora é entre quatro pessoas, dois casais que acabam de se conhecer – fora que em Deus da Carnificina a instituição do casamento é o menor alvo da sátira do diretor: do workaholic esnobe até o simples americano alienado, da mulher trabalhadora até a mãe dedicada e engajada com questões sociais, passando por vários temas que são mainstream nas sociedades ocidentais hoje – tudo é alvo da crítica de Polanski. Por mais perfeito que alguém pode parecer (ou considerar-se), os defeitos sempre existem e é isso que Deus da Carnificina mostra com êxito.