Branca de Neve
Já virou modinha hollywoodiana readaptar contos de origens muito antigas, que remetem à cultura camponesa da Idade Média, mas que vivem até hoje no imaginário da sociedade. De fato, narrativas como Chapeuzinho Vermelho e João e Maria, transmitidas oralmente, sofreram diversas modificações através dos séculos, até ganharem um teor mais infantil e serem imortalizadas na escrita dos Irmãos Grimm. No cinema, ganham novas versões. O mais emblemático dos contos é “Branca de Neve”, clássica animação da Disney que recentemente foi repaginada duas vezes em Hollywood – em uma comédia chamada Espelho, Espelho meu e na aventura Branca de Neve e O Caçador. Agora, o espanhol Pablo Berger traz para as telas uma versão muito diferente de todas as adaptações anteriores.
O novo Branca de Neve se situa na Espanha do começo do século XX. Carmen passa os primeiros anos de sua infância sob os cuidados da avó, sonhando em conhecer o pai, que antes de ela nascer foi um famoso toureiro. Devido às circunstâncias, é obrigada a se mudar para a casa da madrasta Encarna (Maribel Verdu), onde será submetida à diversas maldades, mas terá a chance de finalmente conhecer seu pai.
Berger apresenta uma trama adulta repleta de regionalismos. Ao ambientá-la na Espanha, os personagens e as situações da história como conhecemos hoje são mergulhados no universo das touradas e das danças espanholas. A trilha sonora é marcante e, um detalhe curioso, o som das pessoas batendo palmas lembra o ritmo de uma castanhola.
Só a mudança de cultura já poderia render bons frutos para a empreitada do diretor. Mas ele vai além e produz o filme mudo e em preto e branco – como em O Artista. A escolha, que ajuda a tornar a fotografia muito mais bela, remete aos primórdios do cinema, arte que estava começando a se desenvolver na época em que o longa se situa. Os atores se dão bem com o desafio de dizer através dos gestos, e a atuação de alguns parece propositalmente exagerada em alguns momentos.
A maior sacada de Berger é fazer do seu Branca de Neve um filme exageradamente tragicômico. O enredo não poupa o espectador de sofrimentos agudos, momentos de tensão que são aliviados com situações engraçadas. De certa forma, a primeira parte do filme é predominantemente trágica, e surpreende o espectador com o desenrolar dos fatos e até nos detalhes, trazendo a cena mais bela de todas, e uma das mais bizarras. Na segunda, após a entrada dos anões no enredo, o filme perde força, mas não tarda a chegar no envolvente clímax e no desfecho criativo, cuja comparação com O Gabinete do Doutor Caligari, clássico do expressionismo alemão (movimento no qual o diretor parece se inspirar), é inevitável.
Enquanto Branca de Neve e O Caçador se propunha a ser dark, mas manteve a essência infantil da versão mais conhecida, o filme de Berger teve a ousadia necessária para fazer uma obra verdadeiramente genuína – pelo menos, no cinema, pois é certo que o conto já teve muitos outros enredos ainda mais violentos ou malucos, ao longo dos séculos em que foram transmitidos oralmente.
Branca de Neve é uma obra diferente e ousada, o que, curiosamente, torna o filme muito mais agradável e divertido do que qualquer adaptação recente de contos feita pelo cinema americano. A direção ágil, a trilha de peso e o enredo repleto de reviravoltas, além das peculiaridades espanholas, mantém o espectador intrigado. Você pode até conhecer a história, mas em momento algum poderá prever a cena seguinte. É ou não é uma genuína obra de arte?