Paraíso
Selecionado pela Rússia para representar o país no Oscar 2017, o drama Paraíso (Ray), de Andrey Konchalovskiy, retrata o horror do holocausto de maneira que dialoga com a teoria de Hannah Arendt da “banalidade do mal”, a partir de uma escolha estética interessante: uma espécie de entrevistas em série com os três personagens do filme, que rememoram episódios dos massacres da II Guerra.
Na trama que entrecorta os depoimentos, Jules (Philippe Duquesne), um policial que acaba servindo a todos os interesses nazistas, mesmo com a consciência de que estava fazendo a coisa errada, interroga Olga (Yuliya Vysotskaya), que teria abrigado crianças judias em sua casa. No futuro, o destino da mulher irá se cruzar com o de Helmut (Christian Clauss), oficial do alto comando da SS nazista.
Ao longo da projeção, os três personagens contam as suas histórias para a câmera. Através de jump cuts, cortes bruscos na montagem, o filme denuncia uma certa artificialidade daqueles depoimentos, como se fossem parte de um documentário. Detalhes como o fato dos três usarem a mesma roupa levantam a suspeita a respeito dessas imagens – não é difícil imaginar, porém, o que elas significam, revelado de maneira didática e quase piegas no final do filme pelo diretor.
Bebendo um pouco no melodrama, com uma idealização da personagem de Olga no papel de vítima e heroína, o longa-metragem acerta ao retratar os horrores do holocausto a partir de histórias pessoais, que personificam o horror. Mais ainda, acerta ao tornar, de certa forma, todos os três personagens como vítimas. Embora apenas Olga seja retratada como heroína idealizada, os outros, apesar de cúmplices do horror, são humanizados também. Helmut é o clássico vilão, justificando em seu discurso e colocando em prática em seus atos todos os delírios assassinos da ideologia nazista, mas sua caracterização é tão marcada que ele acaba despertando um misto de ódio e nojo, claro, mas também de pena. O filme mostra que ele, assim como Jules, são seres humanos normais, e é aí que o filme dialoga com o conceito de Arendt. O mal não é exclusividade da natureza do vilão no maniqueísmo, mas é “banal”, e está aí, em dois cidadãos de classe média, um iludido por um discurso sedutor de superioridade moral, o outro à mercê dos acontecimentos políticos, sem reunir coragem o suficiente para fugir ou desobedecer, incorporando então os ideias do poder sem questioná-los. A importância de relembrar o conceito de Arendt é clara, pois é de histórias de pessoas como Jules e Helmut, seres medíocres manipulados por discursos fáceis que culpam um “bode expiatório” por tudo, que o horror vivido por Olga no longa-metragem, e o vivido por milhares de pessoas que não se encaixavam na ideia de perfeição dos alemães, ganhou vida.
Homenageando as mulheres russas que, na ocupação nazista na França, esconderam crianças judias das mãos dos alemães, o longa-metragem tem potencial para provocar reflexões na plateia a respeito de seus personagens e suas ações. E o título, referência ao suposto paraíso que os nazistas achavam estar construindo no planeta, é pura ironia, reforçada pelo preto e branco da fotografia e o horror visto em cena. Como o filme sugere, os nazistas, que queriam tanto serem deuses na terra, só nesse paraíso fake poderiam entrar. Vítimas, sim, mas também cúmplices da barbárie, Helmut e Jules dariam com a cara na porta.
| Gabriel Fabri