Mistérios e Paixões – Crítica
Mistérios e Paixões, de David Cronenberg, chega ao Petra Belas Artes à La Carte
“Sabia que escrever era perigoso, mas não sabia que o perigo vinha das máquinas”. A frase do dedetizador Bill Lee (Peter Weller) sintetiza bem o absurdo da história de Mistérios e Paixões, que mostra o processo criativo de um livro pelas mãos de um escritor viciado em inseticida. Dirigido por David Cronenberg, o estranho longa-metragem é uma adaptação do romance Almoço Nu, título com traços autobiográficos do escritor William S. Burroughs. O filme está disponível no Petra Belas Artes à La Carte, streaming do cinema Petra Belas Artes, em São Paulo.
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Junto com On The Road, de Jack Kerouac, Almoço Nu é um dos títulos mais importantes da literatura beatnik, que marcou a contracultura no final dos anos 50 e começo do 60. Segundo Lucrecia Zappi, essas obras criticavam “o submundo dos desajustados e dos conformistas”. “Álcool, jazz, sexo, drogas e uma boa dose de misticismo permeavam o universo desses escritores de estilo novo, espontâneo, performático, tendo como alvo de ataque a cultura padrão americana”, escreve. Ela define Almoço Nu como a “novela mais controversa de Burroughs, [que] fala da existência humana de uma maneira obscura e repulsiva”.
Cronenberg, por sua vez, é um dos cineastas mais afinados com um universo “obscuro e repulsivo”. Suas obras sempre abordam desejos secretos e perversões, alucinações e o uso da tecnologia (aqui, no caso, a máquina de escrever). Como apontou Janet Maslin na época de seu lançamento, “é difícil imaginar outro diretor que poderia mergulhar tão profundamente na monstruosidade da visão de Burroughs , no fim aparecendo com um filme de monstro bona fide à sua maneira”. Maslin ressalta que, na impossibilidade de retratar fielmente o livro nas telas, Cronenberg trouxe mais da própria figura de Burroughs , da qual o personagem principal funciona como um alter-ego. “O diretor nos lega versões puramente metafóricas dos selvagens e violentamente sexuais cenários do autor”, escreve. “O resultado (…) é um estilo nas telas tão audacioso quanto o de Burroughs nas páginas”.
Nessa trama delirante, Bill acessa, por meio das drogas, uma espécie de realidade alternativa envolvendo uma conspiração com sua próprio esposa, Joan (Judy Davis), e as máquinas de escrever, que se transformam ora em um besouro gigante e repulsivo (a Clark Nova, que fala por um orifício que parece anal), ora a cabeça de um ET que emite fluidos à medida que a escrita vai sendo datilografada. Assim como em Videodrome, outro filme de Cronenberg , a tecnologia, mais uma vez, influência e manipula os personagens.
Recebendo ordens de uma máquina de escrever que, na verdade, é um besouro (ou seria o contrário?), Bill dá vazão a sua sexualidade reprimida e a sua veia artística, adormecida pelo dia-a-dia de seu trabalho pouco gratificante como dedetizador. Ao mesmo tempo, se vê inserido em uma suposta conspiração global, tomando uma importância e um protagonismo que jamais teria em sua profissão real ou até mesmo em seu casamento – este sustentado, aparentemente, apenas por conta de seu acesso fácil ao viciante inseticida. Afinal, mais estranho do que as máquinas de escrever, em Mistérios e Paixões, são as relações interpessoais do autor.
Por Gabriel Fabri
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